O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, para suspender os efeitos da Resolução nº 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que impõe novas restrições ao atendimento médico de pessoas trans, especialmente crianças e adolescentes. Na ação, o MPF solicita à Justiça Federal a suspensão imediata da resolução e, ao final, sua anulação definitiva e a condenação do CFM ao pagamento de R$ 3 milhões por danos morais coletivos. O valor deverá ser revertido em ações educativas e informativas voltadas à promoção dos direitos LGBTI+ e à valorização das identidades trans.
A norma é considerada pelo MPF um retrocesso social e jurídico que desconsidera evidências científicas consolidadas e agrava a vulnerabilidade de uma das populações mais marginalizadas do país. As limitações impostas pela resolução contrariam também tratados internacionais e o princípio constitucional da proteção integral à criança e ao adolescente.
Alterações da resolução e evidências científicas – A Resolução n. 2.427/2025 revogou a norma anterior e impôs novas barreiras ao atendimento:
- Proibição do bloqueio puberal: A norma proíbe a prescrição médica de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes trans. Entidades como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) atestam, com base em estudos científicos e técnicos, que o procedimento é seguro, totalmente reversível e crucial para a saúde mental de jovens trans, com prevenção de quadros de depressão, automutilação e suicídio. O MPF aponta o caráter discriminatório da medida, considerando que os mesmos medicamentos são permitidos para tratar a puberdade precoce.
- Restrições à terapia hormonal: a idade mínima para iniciar a hormonização cruzada foi elevada de 16 para 18 anos, além de exigir um acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, um ano. Na prática, segundo a ação, a idade mínima para o início efetivo do tratamento é elevada para 19 anos, em contrariedade a posicionamento de 171 grupos de proteção de direitos humanos e associações profissionais, inclusive médicas e de outras áreas da saúde pública, que apontam a desconsideração da autonomia dos pacientes.
- Elevação da idade para cirurgias: procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero só são permitidos pelo CFM a partir dos 21 anos. O MPF argumenta que a medida viola a autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo e a maioridade civil de 18 anos, idade que também autoriza, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), a alteração do nome e gênero no registro civil.
- Atendimento pelos órgãos biológicos: a resolução obriga que pessoas trans que mantêm seus órgãos biológicos originais busquem atendimento com especialistas correspondentes ao sexo biológico e não à sua identidade de gênero. Segundo o MPF, a medida contraria jurisprudência do STF, que decidiu que a utilização dessas especialidades médicas é faculdade – e não obrigação – da pessoa trans, e é vista pelo MPF como um desrespeito à identidade do paciente e pode criar ambientes hostis e revitimizantes, desestimulando a busca por cuidados preventivos e terapêuticos.
Além disso, o CFM impõe o cadastro compulsório de pacientes submetidos à cirurgia de redesignação sexual e determina que os dados sejam compartilhados com os Conselhos Regionais de Medicina, medidas que, segundo o MPF, violam a Lei Geral de Proteção de Dados, ultrapassam as atribuições legais dos conselhos de classe e não se justificam por necessidade clínica, científica ou estatística de interesse público.
Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, a resolução do CFM contribui para a discriminação e o aumento da violência, tornando o acesso a cuidados de saúde integrais ainda mais crucial.
A ação também destaca dados alarmantes: pelo 16º ano consecutivo, o Brasil é considerado o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2023, foram registradas ao menos 230 mortes violentas de pessoas LGBTI+ e levantamentos indicam que uma pessoa da comunidade foi morta a cada 34 horas nos últimos dois anos.
Amplo consenso técnico e científico contra a norma – A ação do MPF é sustentada por um volume expressivo de pareceres técnicos e manifestações contrárias à resolução do CFM. A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), junto a outras quatro associações médicas, manifestou-se publicamente contra a resolução, reafirmando a segurança e eficácia dos procedimentos e alertando para os danos que a postergação dos tratamentos pode causar.
Especialistas de centros de referência, como o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e o Programa Aquarela da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirmaram que a resolução ignora a vasta literatura científica e os protocolos rigorosos já seguidos no Brasil. Eles contestam a justificativa do CFM baseada em supostas altas taxas de arrependimento, que, segundo estudos recentes e científicos, são inferiores a 1% e frequentemente ligadas à pressão social.
A ação enfatiza que a norma desconsidera o conhecimento técnico-científico já acumulado sobre os cuidados de saúde afirmativos e impõe um modelo restritivo, sem a devida escuta qualificada da sociedade e das entidades especializadas. Além disso, o conselho ignorou deliberadamente evidências robustas e promoveu uma comparação inadequada com cenários de outros países e há recentes decisões judiciais, inclusive do STF, que também invalidaram recentes resoluções do CFM.
Entre os órgãos que já se manifestaram contrariamente à resolução também estão a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conselho Federal de Enfermagem e outros 171 grupos de proteção de direitos humanos e associações profissionais, inclusive médicas e de outras áreas da saúde pública.
O MPF aponta também que a norma fere direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o direito à identidade de gênero, à saúde, à dignidade da pessoa humana e à autodeterminação corporal.
Impactos nos serviços de saúde – O MPF destaca que a nova resolução tem gerado insegurança jurídica e impactos imediatos em serviços de saúde que atendem à população trans. A norma tem levado à interrupção de tratamentos em curso e ampliado a vulnerabilidade de pacientes, o que pode resultar em riscos à saúde física e mental, além de incentivar práticas clandestinas e perigosas.
Pedidos – O MPF requer a suspensão imediata dos efeitos da Resolução n. 2.427/2025, com o restabelecimento da norma anterior, e sua posterior anulação definitiva. Pede ainda a condenação do CFM ao pagamento de R$ 3 milhões a título de dano moral coletivo, valor que deve ser destinado a projetos de promoção dos direitos e enfrentamento da violência contra a população trans e travesti, com participação da sociedade civil, de órgãos públicos que tratem de direitos LGBTI+ e do MPF.
Ação Civil Pública nº 1008098-36.2025.4.01.3000
Assessoria de Comunicação MPF/AC