Outros dois internos também passaram na prova e aguardam autorização da Justiça para cursar o ensino superior
Por mais que os muros do presídio pareçam delimitar a liberdade, há quem encontre dentro deles a oportunidade para reconstruir a própria vida — tijolo por tijolo, livro por livro. Foi o que aconteceu com um reeducando de 53 anos do presídio Manoel Neri, em Cruzeiro do Sul, que, mesmo após quase 30 anos distante dos estudos, foi um dos três internos aprovados no Enem 2024. Agora, ele vive a expectativa de iniciar o ensino superior, com a esperança de uma nova trajetória.
“Primeiramente agradeço a Deus por essa oportunidade. É um sonho a ser realizado, algo que lá atrás, por conta da vida corrida com trabalho e família, eu não pude viver. Aqui dentro, através da leitura, redescobri o prazer do conhecimento e comecei a sonhar de novo, com uma transformação de pensamento e de caráter”, contou emocionado o reeducando, que prefere não ter o nome divulgado.
A conquista entre grades e livros
A rotina de preparação para a prova foi intensa, mesmo dentro do regime prisional. O interno conta que viu no mural da unidade a oportunidade de participar do exame e passou a estudar com os livros disponíveis no presídio, além de materiais deixados por outros presos que já haviam ido embora.
“Eu estudava com livros do Enem que a equipe disponibiliza, inclusive a dona Vanila, e com materiais antigos de pré-vestibular que consegui aqui. Foi uma trajetória difícil, mas que valeu a pena. Quando recebi a notícia, me emocionei muito, quase chorei. Me arrepiei todo.”
A pontuação dele foi de 511 pontos, com destaque para a redação, que teve como tema a periferia. “Eu esperava uns 800, porque o tema era muito claro para mim. Mas vi que ainda preciso melhorar a caligrafia, pontuação. Tirei 820 na redação. Ainda quero aprimorar mais.”
Um trabalho pedagógico de referência
Segundo o diretor da unidade, Elvis Barros, esse resultado é mais uma demonstração do esforço coletivo da equipe e do comprometimento de alguns internos com a mudança de vida por meio da educação.

“Mais três reeducandos foram aprovados este ano no Enem. Aqui no presídio eles concluem o ensino médio e, com a nota do exame, podem iniciar cursos de nível superior como Engenharia Florestal e Letras – Inglês.”, explicou o diretor.
Ele também destacou que Cruzeiro do Sul já é referência no estado nesse tipo de ação, sendo o primeiro município onde um preso concluiu a faculdade ainda dentro do sistema prisional.
“Esses internos aprovados agora vão depender da autorização do Judiciário para poder cursar a universidade. Alguns recebem prisão domiciliar com autorização para estudar, outros permanecem no regime fechado com saídas específicas para as aulas”, afirmou.
Além do acesso à educação, o benefício também possibilita a remissão de pena. “É como se ele estivesse trabalhando, mas, nesse caso, usando o estudo como instrumento de transformação.”
Parcerias que constroem caminhos
Para Vanila Pinheiro, coordenadora técnica da Divisão de Estabelecimentos Penais em Cruzeiro do Sul, os avanços são fruto de um esforço conjunto.

“Temos parcerias valiosas com a Secretaria de Educação, o programa Presídio de Leitores, com a UFAC, e a professora Maria José. É um trabalho de rede, de valorização da educação mesmo no cárcere.”
Ela explicou que os reeducandos, mesmo condenados por crimes graves, têm direito de prestar o Enem, desde que haja condições de segurança para todos. “Antes das inscrições, a equipe avalia o perfil dos internos. Não podemos expor nenhum profissional ou outro reeducando a riscos. Já tivemos casos de até 11 aprovados num único ano, embora nem todos tenham conseguido a autorização judicial para cursar.”
Ainda segundo Vanila, os presos aprovados que concluem o ensino superior dentro do presídio apresentam os certificados à Justiça para que seja registrada essa conquista nos autos do processo.
“Temos registros de internos que já apresentaram diplomas e certificações aqui dentro. Isso mostra que o sistema, mesmo com todas as limitações, também pode ser um ambiente de recomeço.”
Esperança além dos muros
Ao falar sobre a reação da família à aprovação no Enem, o reeducando se emociona. “A expectativa deles está a mil. Todos muito felizes. Não só por eu ter sido aprovado, mas pelo que isso pode representar para o futuro. Cada fase da universidade será uma vitória.”
Com humildade e fé, ele encerra sua fala com um recado de esperança. “A educação transforma. Ela dá clareza de pensamento, melhora nosso ser e pode abrir caminhos que antes pareciam impossíveis. Hoje, sonho com um futuro diferente — e acredito que ele está logo ali, do outro lado do portão.”